quarta-feira, 19 de maio de 2010

Da potência da vontade [ Ou como fazer uma grande fogueira]

A respeito da vontade como agente que impulsiona os homens a transpor obstáculos e entrar em conflitos com seus temores, não consigo, e ainda me pego distraidamente tentando, encontrar o ponto onde os desejos afloram até transbordarem para fora da vida contemplativa. Esse ponto “é onde mora o diabo”. Em outras palavras, o que estou tentando fazer nessa empreitada de entendimento é encontrar o padrão, o ponto onde as almas incendeiam.

Dinheiro, poder, fama, sexo, alegria – a paixão, que é um fim de si mesma-, cada vontade, incluindo todas as demais que se possa imaginar, faz o indivíduo desenvolver uma potência que o impele à ação; dessa ação, conflitos são resolvidos e novos criados. Sou tentado a acreditar que tudo é de fato vaidade, assim como está escrito no Eclesiastes. O perigo dessa conclusão reside na facilidade com que se pode manipular uma pessoa, uma civilização inteira, tocando em sentimentos, na necessidade do coletivo que pode não corresponder à realidade – por exemplo, alguém pode dizer que a fome é culpa das bruxas, a solução é fazer uma grande fogueira...

Sendo assim, quem conseguir essa questão, pode jogar o que quiser na fogueira – até a si mesmo.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

As mulheres que um dia se tornarão

Não há nada tão inspirador para um homem do que estar acompanhado de uma mulher plenamente formada. Mas o que vem a ser “uma mulher plenamente formada”? Lembremos da primeira namorada.

Aquela criatura desengonçada que você levou ao cinema, que não sabia direito como fazer, como beijar; aquela criatura grande, desproporcional na vestimenta, que deixava o coração em brasa; a mesma criatura que não sabia espremer as próprias espinhas, pois saia na rua com vermelhões nas bochechas, um pingo de sangue no canto da face, que o cabelo nem sempre escondia. Enfim, um tal poço de encanto monstruoso que fascinava por uma graça que só existia na idealização do amante de primeira viajem – e hoje você, homem, conclui que tinha coragem de sobra para encarar “aquilo”; e você, hoje mulher, conhecedora de si mesma, entende perfeitamente o que significa o termo “vergonha alheia” ao lembrar .

Aiai...

Então vem o trato com o armário, batons, esmalte, os perfumes descentes (após longo tempo). Do lado delas, o alvo vai se definindo, atingível ou não, em meio à competição das rivais. Vem a busca por si mesma... Depois de muita competição, quedas, garra e perseverança, surge uma mulher, tal como da própria pedra bruta é talhado um perfil gracioso, milimetricamente perfeito no todo, harmonioso até mesmo na imperfeição que ficou aqui e ali. No julgamento acerca do todo, ela é sempre companheira.

Aqui temos uma mulher plenamente formada, esta criatura que inspira conquistas, não importando quão tortuosa possa ser a caminhada. Uma mulher para a vida toda – se ela quiser...

domingo, 16 de maio de 2010

Andar peladão nas selvas, faminto

Já faz muito tempo que o homem deixou as cavernas. Tomemos o homem um pouco antes dessa época, quando ele sentia muita fome, escondido nas florestas, à espreita. A comida se insinuava para ele, corria de sua vista, ou estava muito alta na copa das árvores. O homem não tinha abrigo que pudesse preservar sua vida, seu cérebro primitivo não tinha capacidade de fazer conexões especializadas, abstratas. A vida era dura, assustadora, preguiçosa, deliciosa e, no final das contas, aprazível.

Três sentimentos eram os mais conhecidos desse homem: a fome, o medo, a preguiça e o desejo sexual. Tá bom, são quatro...

Esse homem primitivo temia a morte, mas de uma maneira que nós, humanidade pós-moderna, não podemos captar imediatamente. Esse homem diante da morte de outro de sua raça desespera-se, evade-se, no sentido concreto desses verbos. No entanto, não existe cerimônia fúnebre, não se coloca ornamentos no túmulo para o indivíduo que se vai, sequer existe túmulo, cova rasa; o morto vai apodrecer ao léu.
Agora avancemos no tempo, onde finalmente teremos um assustador poder de abstração. Aqui entendemos como a vida é curta, como é triste que a morte resuma a existência irremediavelmente. Até mesmo a morte de um estranho é terrível. Então temos necessidade de uma esperança no pós-vida.

Posto que a vida é curta, a vizinhança tem pudor e a polícia anda armada, você não pode circular pelas ruas faminto, peladão – exceto se for para um programa de Tv... – É obrigado a acostumar-se com a selva pós-moderna, uma selva ainda mais cruel e nefasta do que já houve. Essa selva pós-moderna está em toda parte. É a Selva do Espetáculo.

Na Selva do Espetáculo, toda sociedade é a sociedade do espetáculo, exatamente como expõe Guy Debord. As pessoas trabalham não para criar um produto único e perfeitamente útil, as pessoas acoplam fragmentos que não entendem, outras pessoas colam outras pequenas partes, que são acopladas a outras pequenas partes, então a maquina une tudo com o todo. O homem de terno faz um relatório aos investidores relatando os números referentes ao lucro, déficit.

Temos uma cultura que potencializa a fragmentação do pensamento fragmentado. Somos levados a raciocinar a diferença. E, de diferença em diferença, perdemos o concreto da objetividade mais natural que se pode existir: o homem é feito de barro, minha gente. Um barro que respira, que não tem obrigação de entender nada além disso.

Na selva pós-moderna os homens são meros espectadores. A vida pós-moderna resume-se ao espetáculo, a especulações. A vida é espetacular. Desde levar um filho à escola, extrair um dente, queimar formigas com uma lupa, beber cerveja, tirar sujeira do nariz.

Podemos entender, então, porque a mídia é a potência que é. A propaganda comercial que não deixa concluir nada, pois a propaganda não tem um fim, a propaganda tem apenas um desenrolar, é um meio de si mesma.

Podemos entender porque era legal andar peladão nas selvas, faminto, preguiçoso, perseguir a caça.


[Produto do pensamento fragmentado.]